PECADOS DA LÍNGUA

Depois de toda polêmica, deixo minha crítica em formato de crônica.


Foi exaustiva a polêmica sobre o livro – “Por uma vida melhor” da coleção “Viver, aprender” – aprovado pelo MEC. A imprensa ocupou páginas e páginas de jornal e ampliou os noticiários televisivos (e ainda a audiência e o bolso, logicamente) com depoimentos de defesa e de acusação. O MEC preferiu não se posicionar. Se, tardiamente, constatou a besteira que fez, lavou as mãos assim como Pilatos. Mas alunos e professores e a classe dos bem-intencionados que seguem as regras da norma culta sem desconsiderar a chamada língua viva, estes deram em grita.



Não gritaram por pouca coisa. Até entre os debatedores, na intenção de estabelecer diferenças entre o que se fala e o que se escreve, houve quem fizesse concessões – erros considerados corriqueiros de concordância e de conjugação verbal – à língua falada. Pior quando, preconizando o uso da norma culta, alguns admitiram o distanciamento da linguagem popular e da chamada língua viva neste contexto. Como se falar corretamente, de acordo com as regras da norma culta, o indivíduo evidenciasse erudição ou identificasse uma elite cultural. Pois o que garante a boa comunicação é justamente o uso de linguagem acessível ao interlocutor, e esta só detém aquele que segue as regras comuns e aceitas por uma sociedade.


A flexibilidade quanto ao uso de termos ou flexões verbais, a passagem para uma conversa mais informal que admite linguagem mais popular, a articulação espontânea e outros fatores similares contribuem para a chamada língua viva, sem contudo precisar afastar-se da norma culta. O que, na contrapartida, não se evidencia – o “eles pega o peixe”, o “deusde”, a “perca”, o “mol”, o “eu soo” e outras aberrações do gênero produzem efeito de bloqueio na comunicação. Já na língua escrita, a exigência da norma culta foi unânime.


Nós, do extremo sul, temos uma questão difícil de resolver. Enquanto todo o país faz uso do você para tratamento, nós fazemos uso da 2ª pessoa – tu – para o mesmo tratamento. Este diferencial tem trazido àqueles que escrevem muita dor de cabeça.


Sem pretender puxar brasa para o nosso assado, acredito que não carregamos aqui no sul esta imensa gama de erros de concordância verbal que ocorre no norte e nordeste do país. Mas carregamos outra espécie de mau hábito – comemos os esses finais. E aí reside a maior preocupação com a língua tanto falada quanto escrita, uma vez que a qualidade de nossa fala e nossa escrita não se distancia muito.


Vejamos o que acontece conosco, os sulistas. Cada região tem seus hábitos ou sotaques ao falar; este jeito de pronunciar meio escondido ou quase não emitir os esses finais na fala nos identifica, então levamos numa boa. Isto já ficou tão sedimentado entre os gaúchos que falar pronunciando todos os esses nos parece pernóstico, distante anos luz da linguagem informal. Ao escrever, com certeza, flexionamos os plurais e colocamos os esses em seus devidos lugares. Mas aí surge o problema resultante do tratamento em 2ª pessoa – “tu” – que pede a devida concordância verbal. É o caso de: tu falas, tu dizes, tu colocas, tu manejas ou tu falaste, tu disseste, tu colocaste, tu manejaste. Os esses nos causam constrangimento e desconforto. Talvez uma pesquisa histórica nos trouxesse a razão de tal comportamento e nos fizesse melhores.


A questão é de indecisão principalmente para o escritor de literatura infantil e juvenil que pretende para seus personagens – em geral crianças e jovens – uma fala identificada com a fala de crianças e de jovens. Eu, particularmente, fico sempre em dúvida – se escolho a verossimilhança e opto por adequar a forma verbal ao nível do leitor, terei naturalmente que usar o “você” para o diálogo, se quiser permanecer na regra da norma culta. Ou, caso escolha o “tu” regional e não me disponha a abrir mão da verossimilhança, terei de incorrer em erro de concordância verbal, uma vez ou outra.


São os pecados da língua. Não tive acesso ao livro aprovado pelo MEC; desconheço se os autores teriam dedicado com seriedade um capítulo sobre a questão das diferentes linguagens regionais. Caso positivo, talvez eu até me atrevesse a defendê-lo.





Pecados da língua será publicada no jornal RSletras de junho.

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