O texto abaixo foi apresentado na 57ª Feira do Livro de Porto Alegre
II Seminário Reinações na Feira do Livro
Tema: O fantástico e a literatura infantojuvenil
Mesa : Jacira Fagundes e Christian David
Saga Crepúsculo: o fantástico contemporâneo para jovens.
1º de novembro de 2011
Jacira Fagundes, escritora
Stefhenie Meyer, autora da obra, é jovem, nascida em 1973, contando hoje 38 anos.
Casada, tem 03 filhos e uma vida sem percalços até aqui. Nada merecedor de destaque que apareça na biografia de Stephenie, a não ser o fato de pertencer à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Meyer conta que a ideia para a saga Crepúsculo ocorreu para ela em um sonho em 2 de junho de 2003. O sonho era sobre uma garota e um vampiro que se apaixona pela jovem. Ele, o vampiro, sente desejo pelo sangue da garota, porém não quer que ninguém saiba da sua origem. Com base nesse sonho, Meyer escreveu o que constitui o capítulo 13 do livro - Confissões. A autora confessa nunca haver pensado em vampiros, e como o sonho a surpreendeu. Afirmou na época: "Não escolhi os vampiros. Eles me escolheram."
Apesar de ter pouca experiência em escrita (o que se constata já nos primeiros parágrafos do texto), em questão de três meses realizou a façanha de transformar um sonho em um romance e publicá-lo.
O livro foi lançado em 2005. Meyer assinou contrato para mais 3 livros.
(Lua Nova/2006), Eclipse (Eclipse/2007), e (Amanhecer/2008).
Existe receita para o sucesso astronômico que foi a saga? Quais são os ingredientes para uma boa literatura de terror, que se enquadre na contemporaneidade, que conquiste o jovem leitor, que perpetue como sucesso?
Em linhas gerais, faço uma relação do que considero elementos essenciais:
Verossimilhança – O princípio da verossimilhança faz com que um ser ou um fato ficcional, mesmo não sendo verdadeiro, mostre-se a nós como verdade. Ninguém precisa acreditar em vampiros, mas é imprescindível que se acredite na veracidade deste vampiro ou do fato vampiresco que o livro apresenta. Sem esta crença, o leitor sente-se lesado.
Cuidado com a linguagem – Não apenas o domínio da língua e das regras gramaticais, mas sobretudo a estrutura frasal, a escolha criteriosa das palavras e a concisão na narrativa são elementos garantidores do suspense e mistério que a literatura de terror exige. O uso indiscriminado de adjetivos, pronomes e advérbios, principalmente, serve para encompridar o livro, tornar o livro grande, porém raramente um grande livro.
Suspense - É o suspense que segura o leitor na trama, que o faz dominar o medo para ir adiante e se surpreender com o que virá a seguir.
Atmosfera com apelo ao medo – A arte cinematográfica trabalha esta atmosfera – o espaço sombrio, as torres, escadarias intermináveis, os sons, os efeitos especiais, etc. A literatura pode apelar para o texto que apresente visibilidade ao leitor desta atmosfera, que o insira no ambiente, sem precisar necessariamente descrevê-lo. É uma propriedade nem sempre atingida pelo autor, mas é absolutamente necessária para o envolvimento com a trama.
Mistério – Segurar a trama apenas com dados sutis e criteriosas informações sobre o desenvolvimento da história, faz com que o leitor evoque experiências vividas de medo, levante dúvidas, busque saídas, se aproxime com cautela do final, como fosse o leitor o personagem. Este o sentido do mistério que deve perpetuar durante toda a leitura.
Estranho fantástico – É o estranho de Edgar Allan Poe. A estranheza é o elemento que se enquadra e evoca outra dimensão (para além do humano) – desconhecida, assustadora e fantástica.
Diálogo aberto para o leitor – As falas dos personagens devem ser elucidativas, mas não reveladoras. Os diálogos que parecem ao leitor ter a intenção de informar, o desestimulam no desvendar do mistério. Não sobra espaço para a investigação que o leitor quer fazer frente à narrativa.
A trombada – É a revelação tão aguardada pelo leitor, que o desestabiliza momentaneamente, o assombra e o põe a nocaute. A trombada é o ápice onde se ampara e se configura a grande obra literária de terror.
E a obra “Crepúsculo”, o que apresenta quanto aos elementos citados acima?
A obra não apresenta muito do que foi relacionado. Porém o estranho, o sombrio e a discussão entre o bem e o mal estão presentes no livro.
Justifico a análise:
A obra anuncia, já no prólogo, que virá a morte e que vai ser preciso encará-la. Existe um se...para a morte.
“Quando a vida lhe oferece um sonho muito além de suas expectativas, é irracional se lamentar quando isso chega ao fim.”
O caçador seduz a protagonista, ele é simpático, e vai matá-la.
A partir daí, o destino começa a agir conforme o prólogo anuncia.
Bella, a protagonista, viveu na cidade de Forks por pouco tempo. Após a separação dos pais, visitou a cidade por 14 anos consecutivos a cada verão, ficando com o pai, mas detestava a cidade. Depois que passou férias na Califórnia na companhia do pai, ela decide mudar-se para Forks.
Bella reconhece-se diferente das outras meninas da sua idade, pouco falante e solitária, e também muito diferente da mãe que admite nunca ter estado em sintonia, “nunca esteve exatamente na mesma página”. Tem um relacionamento amigável com o pai e demonstra ter cuidados com a mãe.
O livro é escrito em 1ª pessoa – narrador eu protagonista. No meu ponto de vista, a narrativa fica um pouco prejudicada por causa da escolha do narrador.
O eu protagonista não constitui narrador onisciente. Bella, em nenhum momento apresenta uma paranormalidade, o que poderia dotá-la de tal poder da onisciência, o que não é o caso. Dado que prejudica a verossimilhança.
Edward é o vampiro introduzido num ambiente contemporâneo, frequenta faculdade, dirige, anda à luz do dia, é formoso, é do bem, tem família certinha, constituída, circula em carrões, mora em mansão, a família convive com os humanos como iguais.
As características mais acentuadas que conhecemos dos vampiros, não são mostradas, com exceção da velocidade, da capacidade de luta e da necessidade do sangue como alimento (embora sob extremo controle).
Bella se encanta em Edward à primeira vista, sente uma atração irresistível. Ele também sente a mesma atração, porém demonstra repulsa em razão do cheiro de sangue que o atrai e ele sabe que precisa reprimir.
Esta é a história do livro, na verdade um romance entre dois jovens onde a atração afetiva/amorosa/sexual é vivenciada com a estranheza da coisa fantástica, pelo fato de um dos parceiros ser vampiro. Fosse outra a diferença – ele traficante, ou presidiário, ou domador de animais no circo, ou anão, ou gay, ou negro, ou islâmico, ou tivesse alguma deficiência, ou qualquer outra coisa que o diferenciasse do grupo constituído, seria um romance igual a tantos.
A luta feroz para Bella tornar-se inumana segue até o quarto livro da saga.
Adiante, alguns fragmentos do texto da obra, acompanhados de análises particulares.
Página 22 – A autora descreve:
“...que os vi pela primeira vez. Estavam sentados no canto do refeitório, à maior distância possível de onde eu me encontrava no salão comprido. Eram cinco. Não estavam conversando e não comiam...uma bandeja cheia e intocada diante de si...tinham olhos muito escuros...olheiras arroxeadas, em tons de hematoma. Os narizes, todos seus traços, eram retos, perfeitos, angulosos...”
O narrador em 1ª pessoa vê o que a distância impossibilita. Ao leitor atento parece que outro narrador, que não é a própria, precisa anunciar, como um Anjo da Anunciação que se junta à cena. Apenas um narrador em 3ª pessoa seria onisciente o bastante para descrever a cena com os detalhes descritos.
O livro é recorrente nesta questão da ausência de verossimilhança.
Página 58 –
No trecho: “Perguntei a mim mesma por que ninguém mais o vira parado tão longe, antes que ele salvasse minha vida de repente e daquele jeito impossível. Com pesar, percebi a provável causa – ninguém mais tinha ciência da presença de Edward como eu. Ninguém o observava da forma como eu fazia. Que pena.”
Aqui o texto adquire verossimilhança, no momento em que Bella busca uma justificativa para o acontecido anteriormente. Simples, mas verdadeiro: o olhar da paixão só o tem o apaixonado. O texto cresce neste capítulo.
Na página 96, uma quantidade de informações desnecessárias permeia os diálogos – tudo é dito para antecipar o conhecimento ao leitor – é falado e não mostrado, o que torna o diálogo cansativo e desestimulante em relação ao mistério. O leitor é convocado a acreditar nas informações oferecidas pelo diálogo, o que não é bom.
No capítulo “Pesadelo”, pág. 102, a protagonista consulta a Internet e tem muitas dúvidas.
À pág. 107 ela fala: “Aqui, nas árvores, era muito mais fácil acreditar nos absurdos que me constrangiam entre quatro paredes...” O texto apresenta uma boa reflexão. Porém falha ao particularizar cada observação de Bella nos mínimos detalhes, não dando espaço para o imaginário de parte do leitor.
A frase: “Será que os Cullen eram vampiros?” – pág. 108, devolve o estado de medo e insegurança para a personagem, o que é partilhado com o leitor – medo daquilo que se imagina.
À pág. 120, o leitor é surpreendido com uma ótima cena de suspense, quando a protagonista se afasta das amigas e toma uma direção desconhecida e perigosa. Obviamente, é salva pelo amado, mas então o leitor desfrutou 3 páginas de bom suspense.
O capítulo 9, pág. 135, tem o título “Teoria”, bem apropriado. É o capítulo onde se dá a revelação através de um diálogo frustrante e teórico. Deveria ser algo diferente, carregado de aniquilamento para a personagem, enfrentamento do mal, sentimentos vários e conflitantes. No entanto, é uma conversa investigativa apenas, entre os dois protagonistas, no momento, desprovidos do amor que os une.
Destaco dois trechos que apreciei ler: à pág. 199 que trata da guerra íntima de Edward; e o trecho às págs. 283/284 que narra a fuga de Bella para não ser caçada pelo vampiro James.
Seguem alguns depoimentos de leitores da obra, extraídos, sem julgamento, de discussões no site do Linkedin – Grupo autores, escritores, editores:
- Já temos muitos vampiros, acredito que vampiros estão voltando para o caixão e os que devem estar acordados são os anjos. Vejam “Fallen, a batalha do Apocalipse.”
- Vampiros representam pequena parcela da literatura fantástica. O ideal seria juntar Crepúsculo, Harry Potter e Percy Jackson (vampiros, magia e mitologia).
- Crepúsculo trouxe jovens que não gostavam de ler para a leitura, portanto a obra é útil para a literatura fantástica.
- A autora foi feliz em unir numa história, um romance onde o vampiro bonzinho e o lobisomem bonzinho brigam pelo amor de Bella, a donzela. Stephenie Meyer usou o baseboll entre os vampiros à semelhança do quadribol de Potter e um vampiro com família. O filme chamou a atenção do jovem. Muita coisa ainda se pode fazer com os seres fantásticos. Até mesmo criar um ser fantástico a partir dos perfis dos demais seres. O campo continua aberto.
- Vampiros formam uma raça amaldiçoada – viver eternamente não é um prêmio. Vampiro é a personificação de todo mal e animalidade do homem. Bella não passa de “hambúrguer”, alimento. A possibilidade de uma paixão entre eles é fantástica, mas poderia ser abordada se introduzida a luta interna de Edward em tentar se humanizar.
Crepúsculo joga açúcar no sangue espalhado no chão, pinta o sangue de cor-de-rosa, deixa os vampiros bonitinhos entrar em casa.
- Romance açucarado travestido de sobrenatural.
- Muitos acreditam nestes seres, defendem e discutem - Matrix; existem sociedades de defensores e protetores dos Sacis, por exemplo.
- Bella é uma adolescente depressiva necessitada de terapia que se apaixona por uma espécie de Peter Pan sombrio. Só ela tem o cheiro que enlouquece o branquela azedo. É mais morta do que ele, o morto-vivo. A questão do lobisomem encanta enquanto catarse xamânica.
Jacira Fagundes
Escritora
Coordenadora AEILIJ Regional-RS
Gostei muito de sua análise, Jacira! Muito boa mesmo! Aliás, adoro essas análises com fundo psicológico, não se esquecendo dos elementos que fundamentam a literatura: a forma.
ResponderExcluirOntem, estava assistindo um filme, classificado como "suspense": "The hole", "O buraco".
ResponderExcluirOs itens de suspense eram: um buraco sem fundo; um boneco palhaço; uma menina que volta para atormentar a vida da amiga que, sem querer, deixou-a morrer e um pai que volta para atormentar o filho. Todos os personagens saem do "buraco".
Apesar de simples, sem grandes suspenses "novos", com elementos já batidos, fiquei preso ao filme. Acredito que por causa do buraco sem fundo, i.e., algo que poderia apresentar qualquer coisa a qualquer momento.
Gostei muito das suas observações e da sua análise.
Apesar de serem encontrados poucos dos elementos essenciais citados, a saga, acho, conseguiu prender os leitores pelo vampiro inusitado e o lobisomem consciente.
Abraços e parabéns!
SIlvio