RABISCOS




                                           RABISCOS     

 

 

No final daquela tarde entro no vilarejo. Caminho por uma ladeira íngreme e sinuosa à procura do antigo casarão de minha infância. Paro por um instante imaginando escutar o burburinho das cirandas rompendo o breu da solidão. Sem a luminosidade de antes, ele está lá , humilde e abandonado. Parece sussurrar cicatrizes adormecidas na escuridão dos destroços espalhados em úmidas varandas que guardam memórias em segredo.

Esgueirando-me por entre o assombro do silêncio e as paredes desgastadas pelo tempo, procuro meus rabiscos de criança: nuvens, sol, pingos de chuva, estrelas e até um coração. Porém, apagaram-se os rastros. Ficaram  apenas as três andorinhas de porcelana azul, presas no mesmo lugar que minha mãe deixou.

Nesse momento, as lembranças me empurram e me embalam em névoas tingidas de saudade. E só o tempo se encarregará de estilhaçar para bem longe esse sentimento teimoso de  regresso ao passado, ao provocar a volta à memória.

 

                                                                                                     

                                                                                               

                                                                                              Maria Terezinha Lanzini

                                                                                                       Escritora e

                                                                                                       Fotógrafa

                                                                                               

 

 

 

 

 

  

Fumaça na Enchente





                                      FUMAÇA NA ENCHENTE

 

            Chovia há quase uma semana e o ranchinho da Fumaça –feito de lata –  balançava com o minuano que quase não dava trégua. Naquele dia, aproveitando uma estiada do tempo ruim, Fumaça foi na venda do Nicolau e comprou um maço de cigarros e uma garrafa de cachaça.

            – Só bebendo, Nicolau, pra aguentar um tempo desses. Será que vamos ter enchente?

            De nome Maria do Rosário, em homenagem a Nossa Senhora, – era conhecida como Fumaça – andava sempre com o pito nos beiços; dizia que era pra se distrair, não pensar em coisa ruim. A fumaça do cigarro escondia seu rosto miúdo, de feições suaves e delicadas e expressão de tristeza conformada. Nascida em Rosário do Sul, viera para Dom Pedrito ainda menina, sem nada de seu, só com a roupa do corpo, que nem tinha outra para usar. Fazia um biscate aqui, outro ali, lavava uma trouxa de roupa de vez em quando, limpava alguma casa na cidade e a vida seguia seu rumo. Teve dois filhos que deu para criar, e agora vivia sozinha no seu ranchinho de lata na beira do rio. No mais, era um dia de cada vez, se alegrando quando ganhava uma cevadura de erva para tomar um mate na porta de casa. Um catre num canto para se deitar, um pelego para se aquecer nos dias frios, um fogão de tijolos, uma panela de ferro e uma cambona para aquecer a água – o que mais poderia querer?

            Desta vez a chuva estava demorando a passar e o rio já começava a subir. De nada adiantariam a reza e a vela para Santa Bárbara ou a queima das folhas que o padre lhe dera na igreja, no Domingo de Ramos. Nem mesmo a cruz de sal no caixote que servia de mesa, como vira a mãe fazer quando ela era ainda criança.

            Quando a enchente chegou, ela subiu no telhado. Pelego nas costas e garrafa de pinga debaixo do braço. Era tanta água que a casinha saiu do chão. Virou canoa no meio do rio. E Fumaça lá encima.

            – Desce daí, Fumaça. Vou mandar um bote te pegar!

            – Não carece, Nicolau. Vou-me embora pra Rosário, pra o que eu trouxe, muito levo. Cheguei sem nada e agora levo uma casa.

            Um raio clareou o céu, a casa-canoa sumiu nas águas.

            Até hoje, na época das cheias, tem gente que jura que vê o rancho boiando no rio Santa Maria e a risada da Fumaça – pra o que eu trouxe, muito levo.


                                                                                              Dora Almeida

                                                                                                   Escritora


                                                                                              Terezinha Lanzini

                                                                                                Fotógrafa 

                                                                                            

 

 

 

 

 

           

RABISCOS

                                           RABISCOS          No final daquela tarde entro no vilarejo. Caminho por uma ladeira íngreme...