FUMAÇA NA ENCHENTE
Chovia há quase uma semana e o
ranchinho da Fumaça –feito de lata –
balançava com o minuano que quase não dava trégua. Naquele dia,
aproveitando uma estiada do tempo ruim, Fumaça foi na venda do Nicolau e
comprou um maço de cigarros e uma garrafa de cachaça.
– Só bebendo, Nicolau, pra aguentar
um tempo desses. Será que vamos ter enchente?
De nome Maria do Rosário, em
homenagem a Nossa Senhora, – era conhecida como Fumaça – andava sempre com o
pito nos beiços; dizia que era pra se distrair, não pensar em coisa ruim. A
fumaça do cigarro escondia seu rosto miúdo, de feições suaves e delicadas e
expressão de tristeza conformada. Nascida em Rosário do Sul, viera para Dom
Pedrito ainda menina, sem nada de seu, só com a roupa do corpo, que nem tinha
outra para usar. Fazia um biscate aqui, outro ali, lavava uma trouxa de roupa
de vez em quando, limpava alguma casa na cidade e a vida seguia seu rumo. Teve
dois filhos que deu para criar, e agora vivia sozinha no seu ranchinho de lata
na beira do rio. No mais, era um dia de cada vez, se alegrando quando ganhava
uma cevadura de erva para tomar um mate na porta de casa. Um catre num canto
para se deitar, um pelego para se aquecer nos dias frios, um fogão de tijolos,
uma panela de ferro e uma cambona para aquecer a água – o que mais poderia
querer?
Desta
vez a chuva estava demorando a passar e o rio já começava a subir. De nada
adiantariam a reza e a vela para Santa Bárbara ou a queima das folhas que o
padre lhe dera na igreja, no Domingo de Ramos. Nem mesmo a cruz de sal no
caixote que servia de mesa, como vira a mãe fazer quando ela era ainda criança.
Quando
a enchente chegou, ela subiu no telhado. Pelego nas costas e garrafa de pinga
debaixo do braço. Era tanta água que a casinha saiu do chão. Virou canoa no
meio do rio. E Fumaça lá encima.
–
Desce daí, Fumaça. Vou mandar um bote te pegar!
–
Não carece, Nicolau. Vou-me embora pra Rosário, pra o que eu trouxe, muito
levo. Cheguei sem nada e agora levo uma casa.
Um
raio clareou o céu, a casa-canoa sumiu nas águas.
Até
hoje, na época das cheias, tem gente que jura que vê o rancho boiando no rio
Santa Maria e a risada da Fumaça – pra o que eu trouxe, muito levo.
Dora Almeida
Escritora
Terezinha Lanzini
Fotógrafa
Este conto consta da coletânea "Quando o verbo vira trama", publicada em 2020. Textos de 10 escritoras. Dora Almeida participa com 3 maravilhosos contos. A coletânia tem organização e apresentação de Jacira Fagundes. A maestria com que a autora apresenta este conto, provoca no leitor uma mistura de sentimentos que vão da fantasia a uma realidade que corrói o coração do leitor e o faz impotente frente à diversidade de mundos extremos no universo. Parabéns, Dora!
ResponderExcluirDora lembro desse conto quando ainda fazíamos aula com a Jacira junta a editora Metamorfose. Nós leva pelas imagens e personagens para o interior de nosso Estado. Não sei porque lembrei da Cafundá, acho que era assim um personagem da Globo ,que como a Fumaça ,bebia e fumava. Hoje teu texto nós trás uma realidade cada dia mais frequentes das enchentes. E dar poesia a miseria, nós encanta. Sair da vida assim : chegou sem nada e voltou !!! Levando a casa. Muito bom, amei. .
ResponderExcluirDora, tu escreves para encantar quem tem o privilegio de te ler. Fizeste um tour por Rosário do Sul, Dom Pedrito e chegar no rio Sants Maria. E o final nos pega de surpresa: a casinha flutuando com a Fumaça em cima, dizendo para Nicolau " para quem pouco trouxe levo uma casa para Rosário do Sul." Excelente, Dora. Aguardamos outros assim, espetaculares!
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