Conto: Para onde vão as palavras não ditas - Jacira Fagundes

Conto: Para onde vão as palavras não ditas - Jacira Fagundes: Jacira Fagundes - escritora - Porto Alegre/RS

Para onde vão as palavras não ditas

 

            Começava a anoitecer e o os dois sentaram-se à mesa. O homem descansou à frente o jornal aberto, levantou um pouco os olhos e observou-a. Fez uma apreciação sobre o penteado dela; o cabelo todo puxado para o alto preso num passador dourado, bonito, ele resumiu o comentário, gostei. Em seguida desceu os olhos para o periódico e supôs ouvir qualquer coisa dita por ela, assim como também gostei ou algo parecido, mas as notícias que saltavam em manchete abafaram o que ela falou depois, se é que ela falou, ele não teve muita certeza.

            De repente ele percebeu o calor incômodo na sala e também o peso do silêncio. Por falta do que dizer e antes que o calor se mostrasse excessivo, levantou e foi em direção à janela. Então a escancarou, mas aí uma lufada de vento invadiu a peça e ele olhou de relance para a mulher e ela havia trazido os ombros para diante e alternava as mãos a fim de aquecer os braços, e aí ele disse que era melhor deixar fechada a janela e imaginou ouvi-la falar também acho, embora não confirmasse ter sido bem isso, porque no momento ele espiava a rua pela vidraça e via um grupo de rapazes indo para o jogo e fazendo algazarra.

            Sentou-se novamente, o jornal dobrado e perguntou o que se vai comer? E dessa feita ouviu com bastante nitidez a resposta dela dizendo não sei e depois perguntando o que tu preferes. Ele achou melhor ir até a geladeira e ao voltar, trouxe dois copos e uma garrafa de cerveja e abriu a garrafa e serviu os copos, primeiro para ela, depois para ele, e disse botei uma pizza no forno e logo depois que não iria demorar.

            Olhar baixo, a mulher desmanchava uma dobra na toalha e, sem levantar a cabeça falou que sim, que era bom eles comerem uma pizza. Ele aguardou por um tempo que ela levantasse da cadeira com razoável lentidão e depois a viu chegar com os pratos e os talheres e a pizza, com o queijo cremoso todo derretido e colocar frente a ele e o servir.

            Ele comeu em silêncio e quando foi se servir de outra porção observou o prato dela que ainda se encontrava vazio e perguntou se ela não ia comer e pareceu que ela não falou nada e serviu a si mesma, ou então, antes de servir-se disse sim, eu vou. Ele não se deu conta porque estava um pouco distraído, mas falou que a pizza estava apetitosa e então a viu sacudir a cabeça concordando, mas sem dizer nada porque estava com a boca cheia.

            Ela comeu com voracidade e rápido se pôs de pé. Que é que tu vais fazer? ele perguntou. Vou ao banheiro, ele ouviu-a dizer e falar que já voltava. Ele saiu da mesa e ligou o som bem alto como de costume e não escutou qualquer barulho vindo do banheiro, nem no primeiro momento em que o vômito induzido transbordava o vaso, nem no momento seguinte em que ela fazia bochechos com flúor para disfarçar o hálito e molhava o rosto e os cabelos.             Depois a viu voltar, o bonito penteado desfeito, e servir-se outra vez da pizza agora fria, o queijo endurecido, e colocar mais cerveja no copo. E então ele disse que estava ótimo o pequeno jantar, come, ele falou, enquanto trocava o CD no aparelho e ela olhava, silenciosa, e mexia a cabeça para cima e para baixo, mastigando a pizza e tomando pequenos goles de cerveja, muito, mas muito vagarosamente.

 

 

Este conto faz parte do livro “No limite dos sentidos”, publicado em 2009, em 1ª edição, pela Editora Movimento – Porto Alegre/RS.

 


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