Os ônibus intermunicipais vão circular com os contos selecionados no Concurso Prosa na Estrada realizado pelo IEL e AGES.
Quando viajarem pelo estado, e cansarem da paisagem por vezes monótona, leiam um dos contos, e depois recomendem para outros usuários das linhas de ônibus.
Tenham momentos agradáveis e BOA VIAGEM!
Quando viajarem pelo estado, e cansarem da paisagem por vezes monótona, leiam um dos contos, e depois recomendem para outros usuários das linhas de ônibus.
Tenham momentos agradáveis e BOA VIAGEM!
Por
uma pausa na solidão
Jacira Fagundes
Caminho pela casa e me contrai o
exagero de espaço que tenho para mim mesma. Na varanda, as plantas florescem e
se espalham pelos vasos que disponho aqui e ali; a cama de ferro em meu quarto
parece ultrapassar as medidas, assim coberta pela colcha de damasco, faz tempo
deixou de ser cúmplice de amores. Hoje é o lastro onde repouso meu corpo
solitário e o cubro para aquecê-lo do frio e da solidão, o que nem sempre
consigo. Olho o fogão preparado para a abastança – a velha chaleira com a água
a chiar, de repente chega alguém para o mate; a panela da sopa cozinhando os
legumes da horta; e o bule de café, concentrado e amargo, que é para temperar
conforme o gosto.
Mas não espero ninguém, porque hoje
é domingo.
Não há entrega de gás, e não vem bater o
carteiro, nem a moça da lavanderia, nem a mulher da faxina, ou o homem do
bilhete, ou a vizinha a pedir emprestado – “depois lhe devolvo, dona Eulália, a
tesoura de podar, o alicate, a peneira, um saquinho de baunilha que me faltou
para a sobremesa, o cravo, a canela, um comprimido, maldita dor nas costas...”
Sob a janela, não vêm importunar os
moleques e eu não vou alcançar as balas, as rapadurinhas ou o trapo velho para
limpar os machucados das brincadeiras violentas, ou o copo d’água que tantos me
pedem e por vezes fazem fila enquanto encho o copo e o primeiro esvazia e eu
encho outra vez e vem o segundo e aí por diante.
Na sala, a mesa se agiganta nesses
dias em que os nervos me trasbordam e parece desperdício estender a toalha na
ponta do móvel, acanhada – o prato, o cálice, o guardanapo, cada utensílio mais
unitário que o outro. Mesmo assim, me sirvo o almoço, como requer a etiqueta.
Gostosa essa sopa, me anima e conforta. Sorvo o vinho, a garrafa recém-aberta,
e me farto do sabor agradável descendo pela garganta. Fecho os olhos e percebo
ainda mais agudo o silêncio. E então torno a abri-los, tomada por esse desejo
passageiro e fantasioso – vontade que me façam companhia os sons amados, e que pratos
e cálices espalhem-se, lado a lado, por toda a extensão da mesa posta.
“A luz entra escandalosa pela janela
escancarada. O burburinho e o atropelo enchem a sala de euforia. Detenho meus
olhos em cada um e ao mesmo tempo – nos homens da minha vida. É uma refeição intermeada
de palavras soltas e despretensiosas, de dentes à mostra e de barrigas fartas.
Uma vez ou outra uma risada à-toa, um derramar de líquido na toalha, um
derrubar de talheres e um safanão entre irmãos.
Sirvo agora o homem velho à cabeceira –
meu pai. A mão trêmula entornou o molho e já os netos apontam o avô em meio a
risadas. Afago as cabeleiras cacheadas de meus pequenos e a cabeça branquinha de
meu pai, rala de fios.
E vão chegando os convivas. Então, à
minha frente, celebro a presença do pai de meus filhos, tal qual foi em tempos
passados. Ao lado dele, os filhos, já então crescidos e senhores de suas
vontades, não necessitam baixar os olhos quando o pai fala porque a voz do pai
é branda e há sentimento e verdade naquilo que diz.
Hoje é outra vez domingo, e eu faço de
conta?
Ao redor da mesa, o irmão encara o irmão
com agrado sem precisar defender-se a cada observação. Os mais velhos perdoam,
nos mais novos, a audácia, o ócio, o descaso e a pressa. Os mais jovens se
enternecem com a paciência, a conformidade e o desânimo que assaltam os mais
velhos. Numa sintonia, todos falam e todos escutam e apreciam as mesmas músicas
e riem das mesmas histórias. Nessa mesa em que é servido o Banquete de Platão,
todos são doutores e aprendizes. Aqui flui a amizade entre o pai e os filhos,
os netos e o avô; e a alegria não será perturbada e não surgirá desavença e não
haverá alguém que se afastará com rancor.
A um só tempo reparto o pão e meu sonho
de liberdade, deito o vinho nos cálices e abençoo os convivas. Ouço meu pai
recitar uma prece e, quando ele termina, acaricio seu rosto. Olho o pai de meus
filhos e a cumplicidade que se constrói dispensa palavras. E eu sinto que bom
ter chegado até aqui e poder reunir os meus, depois que amassei o pão e
amamentei e lavei a roupa suja e após pendurei no varal e preparei a refeição e
deitei na rede e me entreguei ao descanso. E acariciei o amado e velei seu
sono, e castiguei o filho e lhe sarei a ferida. Lembro as coisas passadas e
vejo o ontem com o olhar do hoje e não peço perdão pelas ações de antes porque
sei que há muito foram perdoadas.
Hoje é outra vez domingo e eu alcanço a
possibilidade do voo.
Porque é assim que reúno o que restou
dos meus, e só o faço uma vez ou outra. Antes que se esvaziem os lugares na
mesa, agradeço a cada um pela sensação de conforto que me traz a proximidade
assim repentina e manifesto a felicidade que tive com a chegada e que devolvo
agora com a partida. Ao se despedirem, saibam todos, que a serenidade sempre me
volta nessas horas. E que, outra vez, sinto na face, o frescor do vento, e
caminho sobre as pedras e sobre a grama com a mesma desenvoltura.”
E, quando tudo tornar a ficar como antes
é porque cada um voltou ao seu lugar e isso é muito bom, eu sempre acabo
afirmando.
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