Por se tratar de uma crônica com uma pontaria certeira na alma de cada um de nós, deixo de lado a imagem que corresponderia ao tema. Desta forma, não me comprometo com sustos predestinados. Abraços aos que lerem, porque ainda estarão por aqui. Boa leitura!
A grande viagem
Li em outro dia um texto de autoria
desconhecida, intitulado “A certa”. Trata de tema bruxuleante, funesto, um
lance certeiro na mosca, aliás, a mosca é cada um de nós. Porque o autor evoca nada mais nada menos do que aquela, a da
face cruel, a que não está pra brincadeiras, a que sempre acerta a pontaria, a
que nos leva para a grande viagem, para o descanso eterno, e a gente nem pediu.
Ela mesma, a própria.
O sujeito
escreveu o texto fazendo-se de
sonso, parece não estar nem aí. Mas eu poderia afirmar que está, porque ela,
afinal, é a única certeza nesta vida cheia de incertezas. Vai ver, estamos tão
acostumados com o incerto da vida que a
coisa certa nos perturba. A cada final de ano, brindamos, enviamos votos de
paz, amor, saúde e felicidade. Desejamos um novo ano radioso e próspero para todos,
indiscriminadamente. Ingenuidade. Quem não sabe que isto não vai acontecer
assim cem por cento? Ficaremos felizes se a dita cuja não fizer ameaças logo
ali na entrada do ano e, pelo menos, deixar-nos garantir o gozo das férias planejadas na dureza. Ou se
nós mesmos, e ainda pais, irmãos, filhos, netos (já é o bastante), nos fingindo
de mortos, conseguirmos manter distância da mira dela.
Eu, por exemplo,
procuro ser modesta quanto aos pedidos de virada de ano. Você sabe, aqueles
velhos conhecidos – paz, amor, saúde, dinheiro. Se forem muitos, vá que na substituição de uns pedidos por
outros, a morte não hesite e faça das suas e se apresente poderosa, sedutora,
íntima, insistente? Sabe lá. Antes a satisfação de pouco do que de nenhum.
Tem gente aí fazendo
os maiores sacrifícios para não encarar a partida. E ficam driblando aqui e
ali, passando a bola para outros que talvez nem estivessem na fila. Suponho.
Incertezas. É com
isto que estamos habituados. E com
torcidas. Torcemos para que nosso time vença o campeonato, que nosso filho
passe no vestibular, que seja nossa a única vaga no concurso, que o companheiro
nos seja fiel, que este relacionamento, afinal, se instale de vez, que tenhamos
sucesso na carreira, e por aí vai. Somos bons nisso. Também costumamos ficar na
torcida em momentos bem prosaicos. Tomara que o meu post no Instagram tenha uma
infinidade de visualizações, e queira Deus que a carga do celular dure até o
fim da viagem, e que este vestidinho ainda sirva agora que parei a dieta, e que
eu acerte as seis dezenas da mega, e que nesta viagem à Escandinávia eu encontre, de verdade, minha alma-gêmea. Ufa!
Banalidades que nos
fazem sentir a delícia da vida fluindo. Na incerteza, sim. Onde não
vislumbramos paradas, limites, interrupções, interferências. Onde focamos o
olhar num futuro sempre belo, luminoso, fugaz, mas grandioso. Na incerteza nada
é para sempre. A gente não se importa com
a perenidade, nos sabemos perecíveis. Um dia o amor acaba, a grana
encurta, a saúde fica abalada, e no outro dia, um outro amor nos surpreende, um
empréstimo nos tira do sufoco, a ciência nos oferece uma mãozinha.
Até o dia em que
aquela que nos ronda cansa deste esconde-esconde e nos convoca para o enfrentamento.
Soa o apito, o juiz sinaliza que o jogo acabou. Só nos resta sair de campo e
empreender a grande viagem.
Sem retorno? Sem uma
outra chance? Tomara que não.
Jacira Fagundes
Escritora